José Cancela Moura: Os iluminados

3 de março de 2021
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Num país atolado de impostos, com uma carga fiscal que, em 2019, se situou nos 34,8%, ou seja, o valor mais alto de sempre, a ideia de lançar mais um imposto para suportar os custos da pandemia é uma provocação absolutamente inaceitável. Num Estado em que as famílias já estão asfixiadas com impostos, criar mais um, seja a que título for, pode na verdade resultar numa penalização dos suspeitos de costume, que é como quem diz, os cumpridores. É sobrecarregar ainda mais uma classe média que não vive, sobrevive.

Esta reflexão vem a propósito do desafio lançado por uma docente da Nova SBE, que afirmou: “Há uma parte substancial das pessoas (…) que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas (…) e são as pessoas com mais escolaridade. Podia-se perfeitamente ter lançado um imposto extraordinário sobre essas pessoas para dividirmos o custo desta crise”.

Esta alegada convicção labora em vários erros e equívocos. Desde logo porque a expressão “burguesia do teletrabalho” parte de um conceito indeterminado infeliz – o que é um burguês?, aquele que vive com mil ou dois mil euros brutos de rendimentos mensal? – e lança um anátema sobre aqueles que trabalham naquela modalidade, como se estes fossem uns privilegiados e integrassem uma elite poupada à crise ou que até exercessem a sua atividade profissional em casa como se de uma viagem às Caraíbas se tratasse. 

Os ditos burgueses podem não ter perdido diretamente rendimentos sobre o trabalho, mas é público e notório que ganharam encargos acrescidos, custeando do seu bolso os gastos de eletricidade e de telecomunicações e dando horas não remuneradas às empresas, num contexto de exercício de funções muito atribulado e altamente desgastante – imagine-se o que é cumprir em casa as obrigações profissionais e, em simultâneo, ter de cuidar e fazer o acompanhamento escolar, de dois ou três filhos.

Um contrassenso, portanto, concluir que é esmagando os cidadãos com mais impostos que se minimiza o impacto financeiro e social provocado pela pandemia. A verdadeira justiça social faz-se mais e também na cobrança mais efetiva da tributação e no combate sério à evasão fiscal. Num país onde alegadamente a EDP recorreu ao planeamento fiscal abusivo e terá conseguido contornar a liquidação de 120 milhões de euros em imposto de selo, no âmbito da operação de na alienação de seis barragens no rio Douro, era importante explicar como se pode pedir às famílias da alegada classe burguesa que paguem mais uma contribuição fiscal. Estamos a falar de um país em que, perante a referida borla fiscal, o ministro da tutela, como se não fosse nada com ele, surpreendente e ironicamente afirmou: “Eu não sei responder, quem sabe é a Autoridade Tributária”. 

Parece que a classe média é afinal o assombro das sociedades e uma certa esquerda, chique e teórica, crê que mais impostos, mais contribuições ou mais taxas são a solução para pagar os efeitos da crise e do desgoverno que temos. Aqueles que, agora, são acusados de burgueses, são neste momento o alvo preferido das práticas de uma doutrina académica, que conhece todas as teorias económicas, mas que desconhece por completo a vida real.

As famílias já pagam IVA a 23%, pagam a eletricidade mais cara da União Europeia, pagam os combustíveis dos mais caros do mundo, por força do imposto sobre produtos petrolíferos, são proprietários de um parque automóvel a cair de podre, e ainda lhes querem tributar mais um imposto?

Para a esquerda iluminada a expressão “burguesia do trabalho” equivale a uma nova versão do dito revolucionário “Os ricos que paguem a crise”. Ora bem, e o que são ricos? Aqueles que poupam, uns mais que outros? É verdade, que os depósitos bancários bateram um novo máximo, atingindo os 162 mil e 800 milhões de euros. É verdade, que este corresponde ao valor mais alto de sempre, mas este, como outros números, podem sofrer da falácia do frango repartido. Quem poupou quanto, quem comeu uma porção de frango, quem ficou com a parte maior e com a parte mais pequena? Certo é que, muita desta burguesia ficará só com os ossos, depois de ser triturada pelo pagamento de tantos impostos. Também vão querer tributar os juros das poupanças acima dos 28%?

Por isso, em nome da credibilidade e da pluralidade, impõe-se dizer que o jornalismo deve fomentar e debater o contraditório não se limitar a ser uma correia de transmissão de uma franja ideológica marginal, que procura protagonizar uma opção que até pode gerar revolta. Levar estas ideias ao colo sem questionar a sua natureza e sentido de oportunidade é uma péssima ideia para a democracia.
 

Artigo publicado originalmente no Povo Livre